...e esgravata.

quinta-feira, 10 de julho de 2008

_________________recorte.

Self-portrait you+me (Jane Mansfield), 1966
fotografia de Douglas Gordon

"Há uma canção de Laurie Anderson na qual a voz de William Borroughs, cava, grave, metálica, e neutra, diz: «Posso ver duas pequenas imagens minhas, uma em cada um dos teus olhos.» As suas palavras ecoam, como um martelo, porque sabemos que é verdade. Quando olhamos alguém de perto podemos ser surpreendidos pela nossa imagem lá no fundo da pupila. Nós, de dentro do outro, no convexo da pupila, pequenos duplos que saem do negro. Seremos sempre esses pequenos duendes que habitam o olhar dos outros, ou mais fundo, lá no fundo. Estranha, a nossa imagem familiar converte-se em caricatura no convexo do olho, como um conto de Edgar Allan Poe. É sobre esta estranheza do nosso reencontro connosco que Douglas Gordon constrói toda a sua obra. Sobre a histeria, sobre o duplo, sobre a duplicidade de sermos um reflexo nos outros. Por isso estas imagens de actores, dos nossos duplos projectados (em duplo sentido), é tão violenta. Porque nos olhos cegos da fotografia queimada há um espelho que nos devolve por detrás das margens da imagem carbonizada, como um olhar que nos olha sem a delicadeza do convexo profundo da pupila. Porventura é uma metáfora da fotografia que diz: «Em cada imagem que vez és tu próprio que espreitas.» O que é uma verdade insofismável - só nos interessamos, só vemos o que reconhecemos, mesmo se, nesse reconhecimento encontramos a mais profunda e radical estranheza. Talvez seja mais ambicioso. Talvez seja uma metáfora da arte, de toda a arte, esse processo de conversão do familiar em estranho. Talvez o espelho por detrás do ícone constituia uma poderosa alegoria do que esperamos de uma obra de arte: que nos abra, aguda e surpreendida, a nossa imagem do fundo da outra, da que contemplamos. Mesmo que sisnistra, mesmo que o buraco, a gruta por onde espreitamos, só nos dê uma imagem gotesca. Se for a nossa, cá estaremos para receber."

Delfim Sardo, in Expresso - suplemento, "Actual" [ ed.15/03]

5 comentários:

Anônimo disse...

Um belo "cozinhado" de lacan, benjamin e outros este artigo, diria com artaud e carrol que na "realidade" é preciso ter a coragem de passar para lá do espelho, para lá da imagem(atávica) no espelho.

flor-de-laranja disse...

é a eterna dúvida da "das unheimlich", da estranheza familiar de freud... do novelo, do casulo, da caverna, do buraco, da casa labiríntica - do chateau da baviera de fin de siècle... enfim...

inicialmente, quando me confrontei com este artigo, pensei de imediato:"bem isto é a insurgência anti-narcísica", a rejeição/morte do duplo. do outro. de nós próprios.
mas de seguida, fui assolada por outra questão, pelo "porquê"? o desconhecido... da dúvida "do cogito" - não sei...

flor-de-laranja disse...

e quão fascinante e pertinente é a alegoria do "queimar", da imagem dos "olhos queimados", na folha de papel (fotográfica).

flor-de-laranja disse...

[o "objecto" observado será a imagem do "olho" de quem o observa. toda e qualquer leitura será sempre condicionada. subjectiva.]

Anônimo disse...

Será tudo isso "sem dúvida" lara. :)

jaz.mim_tu... aqui, deixara de o ser.

à espreita de fa|c|to & gravata.

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