The Hotel, Room 30, 1983
Sophie Calle.
Duas horas e um quarto. As horas esperavam por nós. Duas horas e um quarto. Nós esperávamos pelas horas e pelo quarto. Duas horas e um quarto. E nós os dois impacientes com o tempo que não avançava e os ponteiros da coragem que não andavam nem desandavam. Um desatino. A minha certeza recua. A tua vontade vacila. Duas horas e um quarto e o medo de nos perdermos. atemoriza. Duas horas e um quarto e o medo que a próxima meia hora dissipe a curiosidade. E nos separe. Uma palavra e a iminência da quebra do desejo. Duas horas e um quarto. O vazio do silêncio incita à vertiginosa queda na luxúria. Ninguém cede. Ninguém quer ser o culpado. Da quebra de todo o imaginário que sonhámos. que nos separa. que nos espera. que nos desespera. exasperante. sufoca. Ninguém quer ser o culpado da quebra ou da queda. Será crime.?. Quem cederá. Qual dois dois será o despertador da fraqueza. O relógio marca duas horas e um quarto. O meu corpo desfalece, a saliva desaparece. Os joelhos tremem, as mãos não encontram os bolsos, os olhos escondem-se e os dentes espreitam. mordo os lábios. Um tique infantil que morrerá comigo. És tu que cedes. Julgas-te adulto. Mas qual de nós terá sido o despertador?. Agarras-me os flancos com o braço esquerdo, discretamente para que ninguém do bar do Hotel repare. Arrastas-me: passamos pelo foyer, viramos à esquerda. Encontras o corredor do hotel, parece que já o conhecias. Os meus pés arrastam, rastejam e travam a sofreguidão dos teus passos na exótica passadeira persa de cor intensa. avermelhada. cor sangue-de-boi. de inspiração barroca. com motivos báquicos inscritos. Os meus calcanhares raspam a exótica passadeira, desenhando elipses, arabescos, formas e linhas sinuosas que traduzem a ilusão de um desejo contrariado, à semelhança dos trompe l' oeil . Finge-se com virtuosismo. Travo, hesito o desejo. Eu não queria ceder. Tu não querias perder. A ambiguidade do rubor da minha face: a cor da ira ou o ardor da paixão?. Paixão?. Já?. Ou ainda?. Os calcanhares enterram-se na trama das tapeçarias mas são as pontas dos dedos que disparam para o para o céu! O corpo cola-se ao teu torso, suspenso no teu braço esquerdo em assimetria com o teu corpo, ascético, vertical. lembrando-me um trecho da coreografia Solo For Two, de Mats Ek. o prelúdio da dança. cravo-te as unhas no braço e vou-te mordendo até onde os dentes conseguem chegar. O teu cotovelo escanzelado é o limite. Magoei-te. Magoaste-te. desculpa. mas dissimulas. fizeste-te de forte. - não era necessário -. A porta do quarto aparece. O número trinta surge guarnecido por pinturas idílicas de Pillement. Com a mão direita, passas o cartão pela ranhura da fechadura, empurras a porta, fazes-te passar pelo anfitrião de uma noite que já tinhas reservada.Terei sido previsível? Atiras-me para cama, fitas-me descaradamente com o teu olhar. Depois arrependeste-me da forma brusca como me atiraste. E o teu olhar é outro. Olhas-me de outra forma.Receavas a minha reacção?.E tropeças numa das tiras das sandálias prateadas com debroados brilhantes Svarovsky que ficaram presas ao tornozelo e que se foram soltando dos pés enquanto me arrastavas. Era luxo e luxúria que se esperava daquela noite. Naquele quarto. Às duas horas e um quarto. No quarto do Hotel. Para os dois. Cais em cima de mim. Fechamo-nos os dois. tranco-te entre as minhas pernas e prendes-me nos teus braços. entrelaçamos nossas línguas. Estamos cercados e somos prisioneiros dos nossos corpos ardentes e humedecidos pelo desejo. O teu peito esmaga-me. o meu. peito. rapta-me o fôlego. os sentidos. a indiferença. um aperto. "Como poderei fugir?" - interrogo-me, em pensamentos, dispensando, no entanto, que a razão me dê resposta. Entre o corpo e o corpo não há escapatória. Nós éramos o único ponto de fuga. Boca na boca, olhos nos olhos, corpo no corpo. Só nós. E os bombons sobre as almofadas, embrulhados em papel alumínio dourado, da cor da velatura de luz quente que nos despia. Perguntas-me: "como queres?"; respondo-te: "queres-me como?". dizes-me baixinho com as tuas duas mãos em concha segurando-me. amparando-me a nuca, detendo e exigindo a minha atenção, com os lábios a roçar ao de leve nos meus, e dizes-me, dizes-me, dizes-me, diz-me baixinho: -"quero-te". -"apenas isso?", pergunto-te eu. -"tudo isso. quero-te." e depois, a noite foi só nossa. foi só nossa?
[...]
Desde então, tenho-me esquecido de mim. devolve-me.