«No caso da «Antígona» do Living, as solicitações são menos precisas e mais complexas. Mantém-se o plano narrativo e os actores saem do personagem que incarnam para nos contar o que vai suceder ou para comentar o sucedido: o mito de «Antígona» volta a ser a tragédia política de sempre, a luta da filha de édipo contra o tirano Creonte, das leis éticas contra os discursos do vencedor, do homem contra os direitos da vitória militar; a Antígona põe a nu a inconsistência ética dos argumentos paternalistas e aparentemente sensatos de Creonte, dando assim, forma ao esquema geral de todo o teatro de Brecht; os que afirmam que a ordem do Mundo é a melhor possível, e que os que denunciam as misérias dessa ordem, mostrando, por vezes com a própria morte, a impossibilidade de aceitar, e portanto de a modificar.
O Living deixa de pé estes elementos. Mas introduzindo uma força de «desmassificação» e desequilíbrio. O esquema de Brecht, diz-nos o Living, é válido; porém, o homem não é apenas uma entidade ligada a uma estrutura e uma alternativa moral, mas também dor, sexo, recordação, violência. Antígona não só tem o direito de enterrar os irmãos, de obedecer à lei injusta, como também, e ao mesmo nível, de libertar uma série de paixões que lhe são negadas. O espectáculo revolta-se, pois, não só contra uma ordem de normas sociopolíticas, mas também e integrando-as no mesmo protesto, contra uma série de inibições profundas, de pudores obscuros, de continências inconstantes.
Daí a intensidade de «provocação», de excitação, de desejo de arrancar o espectador da sua carapaça, que a representação transpira. Na sua «Antígona» o Living utiliza a «distanciação» depois de rompidos os preconceitos de tantas distanciações não exigidas pela encenação. Ou será que - e neste ponto vemos os perigos de exagerar as teorias de Brecht - o espectador comum não consegue situar-se terrível e pejorativamente afastado da representação? Não estamos nós habituados a um teatro que pressupõe este afastamento? Se assim não fosse, como poderíamos explicar a infantilidade, a ingenuidade, a trivialidade de tantas obras? Não criou a a nossa sociedade espectadores consumidores, senhores e donos do teatro, Ubus a quem autores e actores têm que agradar, mesmo a custo das chicotadas de que precisa o masoquista?
A primeira coisa a fazer é, portanto, quebrar essa distância a que o espectador automaticamente se coloca; irritá-lo, provocá-lo, desarmá-lo, para que se possa contar totalmente com ele e introduzir o discurso crítico e essencial numa atmosfera sem preconceitos, de espectadores que perderam os seus privilégios e estão ali, disponíveis e sem esquemas, para aceitar ou rejeitar, contando para esta tomada de decisão com forças que nunca sobre ele actuaram na plateia de um teatro.
É este o contributo do Living para a «Antígona» de Brecht. Contributo sem dúvida muito importante nesta época do Brecht acorrentado pelos seus imitadores. Contributo também discutível, que tem o seu ponto de partida no próprio texto de Brecht sobre a necessidade da «não intimidação pelos clássicos».
Nas suas Notas, Brecht falava das máscaras e cenários possíveis. Os elementos do Living confiam o espectáculo, só precisam de uma delimitação do espaço cénico e de um fundo neutro. Nem pano de fundo, nem complicações luminotécnicas. Nem guarda-roupa especial, nem orquestra. Frente ao público, alguns actores estão de pé; actores que o provocam (a partir de um longo happening nada gratuito), que o obrigam a definir-se. Depois, interpretam a «Antígona» de Sófocles segundo Brecht, introduzindo no espectáculo muitos elementos que não se encontram no texto nem no modelo brechtiano. Cantam «espirituais», dançam lascivamente uma dança de Baco, descem à plateia, cospem-nos, olham-nos ora com amor, ora com ódio, contam-nos a tragédia de «Antígona» não só como o drama político, mas também colocando dentro de cada um de nós a personagem reduzida à sua condição humana, despenteada, com a pele de todas as raças e assassinada por todas as ditaduras.
O Living não se deixou intimidar, nem por Sófocles, nem por Brecht. Mostrou assim o único caminho da verdadeira criação cénica: integrar todas as aquisições anteriores no próprio discurso, na própria experiência, de acordo com a necessidade do momento.
A «Antígona» do Living não é uma montagem brechtiana no sentido corrente do termo. No entanto, se Brecht não tivesse existido, ela não seria possível.
A estética do Living baseia-se num princípio simples: tudo o que é palavra pertence à literatura; só a linguagem gestual é especificamente teatral. Os Mistérios e Antígona apresentam-se da mesma maneira: o actor procura impor ao espectador certos tipos de relação baseados na agressão ou comunhão.»
in Grotowsky. Brecht. Piscator. Lefebvre. Benjamim. Planchon.Teatro e vanguarda.
Lisboa: Ed. Presença, Biblioteca de Ciências Humanas, 1973. pp.- 122-124.
+
Living?
«extractos de uma entrevista de Julian Beck.
p. 27: pensamos que seria melhor desenvolver o poder da decisão do espectador não pela via do racionalismo e da distância, mas sim pela histeria, do fanatismo e do terror.
p. 25: aquilo que vemos com a droga-droga é talvez mais real do que aquilo que somos levados a compreender com a droga da educação, da política, da língua, das palavras. Estas coisas são igualmente drogas. Desde a infância que somos drogados com todas as ideias da civilização. Precisamos de eliminar essa droga...»
in Revista «Le Point», Bruxelas, n.º 8, Fev. de 1967: O Caminho da histeria, por Jean-Pierre Berckmans, pp. 24-29.//.